George Orwell previu, em "1984", que nossa sociedade seria observada 24 horas por dia por câmeras, o tal "big brother".


Acertou na mosca.

O que Orwell não previu é que íamos gostar tanto.

Atualmente, compra-se, por qualquer dez merréis, uma webcam com qualidade sofrível. A internet é uma platlaforma de lançamento perfeita. Hoje em dia, transfere-se arquivos de várias dezenas de megas em instantes para qualquer site, onde o mundo todo pode ter acesso. E o resultado é uma onda sem precedentes de narcisismo.

Em qualquer época, em qualquer lugar do mundo, o ser humano sempre quis ser famoso. Ser bom em alguma coisa. Ser respeitado, admirado, olhado de baixo pra cima. Se destacar na multidão, não ser mais um. Ser célebre. Daí vem "celebridade".

Mas antigamente, você precisava ser alguma coisa, ou fazer alguma coisa notável para conseguir esse feito. Seja escrever um livro ou ser um grande ator. Hoje em dia, todo mundo quer seus 15 segundos (Andy Warhol errou, 15 minutos é muito) de fama por qualquer coisa.

A chegada dos reality shows na TV só piorou tudo. Numa edição de um Big Brother, a pessoa encontra modelos perfeitos do que ela gostaria de ser. "Ele é igual a mim. Só falta eu ter músculo". E tome bomba para fica igual.

Sempre existiu a figura do "comedor". Era aquele cara que fazia propaganda aos quatro ventos de toda menina que ele pegava. Hoje isso não é suficiente. O cara tem que comer, filmar e mostrar para a galera. O pior, está acontecendo com o consentimento das garotas. Também sempre existiram as "gostosas" da escola. E para elas bastava, bem... ser gostosa. Não hoje. Agora, a gostosa tira fotos de si mesmo no espelho, de calcinha e sutiã (as vezes nem isso), e tasca no perfil do Orkut. De acordo com alguns filminhos que circulam pela net, todo casalzinho de namorados transa como se estivesse num filme pornô. Os moleques soltam pérolas como "vai vagabunda", "mexe esse rabão" ou coisa pior. Elas gemem como profissionais (que pelos menos são pagas pela encenação), fazem caras e bocas e atuam num desconfortável meio termo entre como deve se portar uma menina de 12 anos e uma dona de bordel.

Talvez eu seja o careta, o tiozinho da situação toda. Talvez esse seja o futuro que chegou, e se por um lado tudo é mais razo, por outro haverá mais espaço para alguém com três neurônios sobressair-se. Mas me preocupa.

Preocupa porque não há contrapartida. Eles continuam na punheta deles, e não se interessam por mais nada. Você pode ser bonito, forte e pegador e ainda assim, ter aspirações. Não é o que eu vejo. Sinto nos moleques e meninas a forte crença de que uma barriga de tanquinho ou uma bunda perfeita vai levá-los sim, longe na vida. Sinto uma dualidade perigosa. A vontade de ser adulto aos 12 anos e continuar um moleque aos 35. Sinto que vários adultos entraram nessa também, e diversos manés que nunca foram nada na vida passaram a enxergar nos anabolizantes e cirurgias plásticas uma chance para voltar ao mundo mal resolvido de suas adolescências.

Não vejo problema com vaidade. Acho que todos devem tê-la em uma medida. O dificil é quando vira objeto de mobilização nacional.


Capitulo 4

Omaha - 1993
Segunda faixa do álbum August and Everything After
Counting Crows


Faz tanto tempo... E parece que foi ontem.
Em 1994 passei a morar sozinho. Eu tinha 22 anos. Consegui alugar um apartamento em plena Praça Vilaboim, a metros da FAAP, onde estudava. Era mais ou menos um sonho se realizando.

Era um quarto e sala de bom tamanho, praticamente sem vista. Os armários da cozinha precisavam ser escorados, senão caíam. Minha grana era tão curta, que não consegui comprar a tinta necessária para cobrir as paredes sujas. Resolvi fazer um "efeito" com uma esponja, a sala com um tom marrom, e o quarto, seguindo o padrão azul. O resultador ficou.... sui generis. Acho que se eu vivesse olhando aquelas paredes hoje em dia, já teria desenvolvido algum tipo de epilepsia. Mas funcionava. Escondia a sujeira.

Eu chegava do trabalho pelo metrô Marechal Deodoro, subia uma interminável ladeira chamada Albuquerque Lins, e dava para esperar em casa vendo TV antes de ir a pé pra faculdade. Quando (como o Vinícius bem lembrou no post anterior) eu resolvia estudar no boteco, eu atravessava cambaleando a praça, direto para a cama, às vezes com a roupa do corpo. Era sensacional.

Nos fins de semana, estranhamente, a rotina era mais branda. Gabriela vinha me visitar, e tínhamos nossa rotina de casalzinho jovem, subitamente libertados da necessidade de fuga que tínhamos quando namorávamos nas casas de nossos pais. Ali era minha casa, meu castelo.

Não faltava nada, mas o apê não se parecia com nada, também. Cada um dos (poucos) móveis que eu tinha, veio dos restos da mobília velha das casas de parentes. E cada um de uma época. Compramos uma manta para cobrir o sofá, que segundo minhas memórias ficou muito bonito. A função verdadeira era para cobrir o grande rasgo no assento.

De novo mesmo, eu tinha a geladeira e o microondas (que me seguem até hoje!).

Mas como era bom.

Eu e a Gabi fazíamos compras nos fins de semana. Voltávamos do mercado cada um com dez sacolas nas mãos, quase todas rompendo com o peso, e andávamos bem uns 6 quarteirões, parando de quando em quando para fazer voltar a circulação nas mãos.

A falta de carro nos deixou vários finais de semana no apartamento.Não ligávamos. Tinha uma locadora bem na esquina, enchíamos a casa de filme, e assistíamos juntos, deitados, divindindo impossívelmente um sofá de 2 lugares, numa televisão velha que ficou completamente verde na mudança.

No domingo, andávamos de bicicleta no bairro de Higienópolis. Voltávamos cansados, bebíamos cerveja e enchíamos a cara de Tequila com limão, escutávamos Counting Crows (um dos poucos CD's que tinhamos) depois dormíamos juntos, o resto da tarde. Ás vezes, andávamos até a Avenida Paulista, pegávamos um cinema e voltávamos. Ela era minha, eu era dela.

Não havia guarda-roupa. Com o tempo comprei uma penteadeira, onde colocava tudo, mesmo aquilo que precisava de cabide. Minhas revistas, numa dessas estantes de aço. Cabia tudo.

Um fenômeno estranho começou a acontecer. Cada vez mais roupas da Gabi apareciam em minha casa. No começo era um pijama, depois uma roupa extra pra sair se fosse o caso. E quando eu dei por mim, o figurino dela todo estava lá. Precisei tomar uma atitude enérgica. Compramos uma fruteira. E nela colocamos a roupa da Gabriela. Cabia tudo.

Alguns meses depois, o inevitável aconteceu. Gabriela se formou, foi para lá um dia. E nunca mais saiu. Nem da casa, nem da minha vida. O apartamento, tão sem jeito, tão tímido, ganhou flores, ganhou quadros. Um tapete que dizia bem-vindo. Copos para visitas. Cabia tudo.

Ali eu aprendi a ser sozinho. E logo depois, a ser dois. Ali eu aprendi a cuidar de alguém, e conheci o amor que não vem da família. Ali eu aprendi aos poucos, o que é ser casado, e por isso não me espanta tantos casais se separem depois de tão pouco tempo. É porque casaram de repente. Eu casei aos poucos.

Dali mudamos muito, e pra lugares sempre melhores. Mas quando me lembro do velho edifício Caribe, eu só lembro dela, e de mim, e dela e nós dois o dia inteiro, a noite inteira, o tempo todo.

A vida tem sido assim, até hoje. Já cantamos músicas mais tristes, mais amargas, e outras muito mais alegres. A banda cresceu, e hoje é menos etílica, mas com certeza, mais feliz ainda, com uma voz nova. Eu, ela e ele.

E continua cabendo tudo.